Uma pessoa que, até aos dezoito anos, não sabe o que é privar-se seja do que for, que vive no meio de uma família bem estruturada e economicamente estável que preza antes de tudo a boa educação, a honra e a disciplina e que, num momento, vê tudo isso ruir à sua volta, ficando obrigada a ocupar o lugar de chefe de família, se não sucumbir à modificação, torna-se, de um momento para o outro, num ser adulto capaz de resolver qualquer situação que se lhe depare. Foi o que aconteceu comigo. Foi uma vida muito difícil mas, nessa idade, as dificuldades económicas não são coisa que faça esmorecer a vontade de dar a volta à vida e de descobrir o mundo. Vivi alguns anos com relativa despreocupação e não me privei de todas essas alegrias que a juventude nos permite viver. Na verdade, nesses anos da juventude, a esperança de que tudo vai correr bem é uma certeza e facilmente se esquecem as preocupações. Atentos a todas as coisas novas que nos acontecem a cada passo, não nos resta muito tempo para parar e pensar nos dias passados. Tudo nos move para a frente, para o dia seguinte.
Aos vinte e três anos, terminados os estudos, entrei na vida profissional. Não sei se por sorte ou azar, num departamento do Estado onde o trabalho e a disciplina eram para levar a sério. Habituada como estava ao rigor da vida e ao cumprimento de deveres, não me foi difícil a adaptação. Curiosamente, em outros departamentos do mesmo Serviço havia procedimentos muito diferentes. Colegas com habilitações equiparadas às minhas auferiam o dobro do salário e tinham dois meses de férias. Aconteceu mesmo que fui chamada à atenção por cumprir rapidamente as tarefas que me eram destinadas. Diziam-me os colegas que eu me estava a evidenciar e que havia chefes que me apontavam como exemplo, o que para eles era muito aborrecido. Evidentemente que levei o assunto para a brincadeira. A boa disposição era uma constante na minha vida e dificilmente me separavam dela. Hoje percebo que, acima de tudo, eu tinha uma visão da vida muito infantil, por isso, os assuntos, por mais complexos que fossem, não me abalavam muito. Tudo se resolvia com relativa facilidade. Criei grandes amizades nesse período. A maioria delas, mantenho-as, aos sessenta anos.
Ao fim de dois anos de trabalho, já tinha aprendido muito. Especialmente a lidar relativamente bem com as chefias que se digladiavam por coisas sem importância alguma e que com essa vida se iam entretendo a seu belo prazer.
Havia naquele Serviço todo o tipo de gente. O que estranhei mais a princípio foi a quantidade de pessoas dementes que se passeavam pelos corredores sem qualquer ocupação, depois, fui-me habituando, apesar de não perceber porque eram mantidos no emprego. Afinal, toda a gente estava habituada a essa situação, como se de coisa normal se tratasse. Havia também pessoas alcoolizadas. Com esses já todos sabíamos que era preferível tratar dos assuntos da parte da manhã. Depois do almoço dormitavam pelos gabinetes e era impossível interrompê-los. Havia um número muito elevado de funcionários que tinham por missão qualquer coisa que nunca percebi bem. A maior parte deles não aceitavam ordens nem pedidos de ninguém. Mantinham-se pelos corredores conversando entre si como vizinhos à porta de suas casas nos bairros periféricos da cidade. Com a minha inexperiência ainda tentei uma vez pedir o favor de um qualquer trabalho e apanhei com um “vá lá você” que logo me ensinou como eram as coisas por ali. Dizia-se que alguns eram informadores da polícia política. Nesse caso o melhor era mesmo não hostilizar…
Por esse tempo deu-se o 25 de Abril de 1974. Começaram então as acusações de corrupção e muito pessoal dirigente foi saneado. Soube então que durante anos e anos muitas das chefias se serviram de expedientes que lhes permitiam engendrar falsas despesas que lhes permitiam arrecadar e distribuir dinheiro. Evidentemente que aqueles que arrecadaram sem distribuir foram os principais acusados. Houve processos de averiguações, processos disciplinares e mesmo acções em tribunal. Os resultados foram fracos, como está bom de ver. A honestidade era um sentimento tão raro que, estando a maioria do lado errado este passou a ser o “certo”.
Entretanto os funcionários em geral foram-se enquadrando nos partidos políticos e as assembleias-gerais de trabalhadores sucediam-se dia após dia e, em vez de haver chefes que se digladiavam, passou a haver hostes que faziam o mesmo. Passava-se ali exactamente o mesmo que sucedia na vida política nacional. Acertos de contas com os simpatizantes do regime anterior e lutas intermináveis entre as várias facções que se posicionavam contra o regime. Por vezes uns passavam-se para o lado dos outros e, a confusão era tanta que a certa altura já não era possível distingui-los.
Entre o pessoal jovem era diferente. Quase todos tínhamos a certeza que o poder estava nas nossas mãos e que era possível mudar tudo o que percebíamos estar errado. Evidentemente que estávamos enganados mas só passados alguns anos nos apercebemos disso. Na verdade, ao fim de uns cinco anos tudo começava a tomar um rumo que nada tinha a ver com as nossas esperanças de que da revolução saísse uma sociedade mais justa e soberana. Hoje sei que foi um sonho lindo que acabou. Aliás, já o sei há alguns anos mas, apesar da lição que me foi dado aprender, continuo com esperança que esta geração a que pertenço e que viveu tão intensamente esses momentos possa pelo menos transmitir aos mais novos essa certeza de que é possível modificar o que consideramos estar errado, nem que seja com o esforço continuado de uns poucos.
Quando, aos vinte e cinco anos, ainda mal construída a personalidade, somos apanhados pelas reviravoltas da História e as portas de um novo mundo se abrem na nossa frente como se abriram para mim em Abril de 1974, é difícil o regresso ao passado mesmo que em pensamento. No turbilhão de acontecimentos que se desenrolavam na nossa frente, quase esquecemos tudo. Ficou-nos o passado muito longe, muito insignificante. Arrumou-se a um canto da vida, coberto de sombras. Hoje, recordamo-lo apenas para tentar contar como foi mas, para o bem ou para o mal, nunca mais conseguimos dar-lhe a ênfase dos momentos realmente vividos. Do medo, dos silêncios inconscientes, das noites de vigília. Acho que por vergonha ou por sabermos que é difícil transmitir, ou que é impossível que os nossos jovens acreditem ou não entendam nada, ou o assunto não lhes interesse, simplesmente. Não sei.
Por outro lado, talvez ainda mais difícil seja transmitir a enorme alegria da vitória sobre esse mundo obscuro. É realmente uma tarefa dos diabos relatar como é sentir o coração e o cérebro maiores do que nós. Gigantescos. Quase a explodir de vida, de tudo.
Liberato Campos
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